
"Se soubesses em que me encerro;
todo esse excesso de mim!
À muito me carrego...
Não sei se tenho começo
ou fim..."
by Patyça
SOU DE OUTRAS COISAS
Sou de outras coisas
pertenço ao tempo que há-de vir sem ser futuro
e sou amante da profunda liberdade
sou parte inteira de uma vida vagabunda
sou evadido da tristeza e da ansiedade
Sou doutras coisas
fiz o meu barco com guitarras e com folhas
e com o vento fiz a vela que me leva
sou pescador de coisas belas, de emoções
sou a maré que sempre sobe e não sossega
Sou das pessoas que me querem e que eu amo
vivo com elas por saber quanto lhes quero
a minha casa é uma ilha é uma pedra
que me entregaram num abraço tão sincero
Sou doutras coisas
sou de pensar que a grandeza está no homem
porque é o homem o mais lindo continente
tanto me faz que a terra seja longa ou curta
tranco-me aqui por ser humano e por ser gente
Sou doutras coisas
sou de entender a dor alheia que é a minha
sou de quem parte com a mágoa de quem fica
mas também sou de querer sonhar o novo dia
Fernando Tordo.
Ele abriu as janelas com imensa dificuldade e deixou que entrasse a paisagem modorrenta. No rio que não era rio, navegava uma barcaça estúpida, sem marinheiros a acenar para o porto nem apito a encher o ar de irritação. Um sol negro banhava de tédio as casas que viravam as costas para as águas que corriam sem pressa.
Ela adorava ficar a ver navios.
Sentado na cadeira baixa, ele tinha os olhos pouco acima do inconveniente parapeito, mal conseguia ver a rua deserta de sentido. Havia um vento parado que soprava seu rosto, mas não maçava as cortinas ou fazia tremer a cristaleira.
Ela sorria quando olhava a rua apinhada de gente.
O horizonte visto pela fresta de rua que lhe deixaram os casarões ribeirinhos era pequeno como a sua vontade de viver. Mas, para Lázaro, nada era mais estreito que a sala atrás de si. A namoradeira que ela herdara de uma avozinha cortesã era absurda como aquele messias oferecendo o próprio coração na mão esquerda iluminada ainda a sangrar seu misterioso estigma – e não havia salvação que lhe pudessem ofertar. Havia o enredo das toalhas de bilro, intrincado como sua vida, belo como o rosto de sua Alma. E as flores de tecido, as pastoras de porcelana, o salgueiro chorão na aquarela esmaecida – nada tão morto antes como era agora.
Maria das Almas gostava de cor e ordem. Pensava que elas trariam de volta o esposo destruído pelo sofrimento. Sua existência de mulher era regulada pelos passos de Lázaro, e assim se tornara por sua própria vontade. Tudo naquela casa existia para que o esposo sentisse a vida passar sem percalços. Ela cuidava-lhe as dores, alimentava-o, dizia-lhe as palavras carinhosas e falsas que acalentavam sua doença sem cura nem melhora. Era Alma quem fazia com que os dias ocorressem sempre iguais e cheios de vida. Ela tornara-se as pernas, os braços e o coração de Lázaro, que pouco caminhava, nada mais queria possuir e sentia apenas dor onde antes existira o vigor e a paixão de homem do porto.
Dizem que a morte de um homem é sempre uma desordem infinita – pois que vissem o que resta após a partida de uma mulher como Alma, pensava Lázaro enquanto via a barcaça inútil desaparecer por trás do casarão abandonado à beira-rio. O sol negro ardia-lhe por dentro e o vento frio varria a sala com força, mas os objetos todos, apagados por uma estranha lividez, não se moviam jamais, destituídos que estavam de sua função de construir para Lázaro sua vida e seu mundo.
(Robertson Frizero Barros)
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