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"A ALMA É ESCRAVA DA NATUREZA ERRANTE QUE A OCUPA..."
by me

...é engraçado a força que as coisas parecem ter...quando elas precisam acontecer!

segunda-feira, 19 de abril de 2010

DUBITO ERGO SUM




O PODER DO CONCEITO:do Übermensch nietzschianoao Superman americano
Gustavo Bernardo


Publicado originalmente nosCadernos de Letras da UFF, 1997.


Der Übermensch é um conceito central da obra de Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do século XIX. The Superman é um personagem das histórias em quadrinhos, criado pelos estudantes norte-americanos Jerry Siegel e Joe Shuster, em 1938. Übermensch é usualmente traduzido como Superman, em inglês, e como Super-Homem, em português. Logo, podemos concluir que o Superman americano realiza o Übermensch de Nietzsche? Não. Não é bem isso que tentarei demonstrar. Também não tentarei demonstrar que o Superman seria a redução, a mediocrização do pensamento do filósofo alemão. Ambas as formulações se mostram tentadoras, mas levam ou ao equívoco de aproximar o valor de produções culturais tão díspares, no primeiro caso, ou ao equívoco de desvalorizar a priori o personagem em favor do conceito. Entretanto, não há como negar que os termos se confundem e vez ou outra se interpõem, tanto no campo dos media quanto no campo da filosofia stricto sensu.
Por que os termos se confundem e se interpõem? Por que der Übermensch continuaria sendo necessário? E por que the Superman também se fez necessário, ainda que por razões diversas? Estas são as minhas questões básicas.
Mas o leitor, talvez, não veja qualquer relação importante entre o conceito de Nietzsche e o personagem de Siegel e Shuster. A proximidade dos nomes não passaria de coincidência. O leitor chama a minha atenção para a tradução do termo Übermensch. “Mensch” é um termo neutro, em alemão, a indicar “ser humano”, enquanto “Mann” indicaria, aí sim, “homem”, por oposição a “mulher”. O Superman americano seria, na verdade, der Übermann. As traduções de Nietzsche para o inglês e o português apagam essa distinção importante, facilitando a confusão, que seria impertinente, com o herói norte-americano.
Magnus, Stewart e Mileur, no seu trabalho sobre “o caso Nietzsche”, evitam o termo superman exatamente “because the word ‘superman’ seems to us to have been preempted by Clark Kent in English”. A opção overman, por outro lado, além de não traduzir todas as possibilidades contidas na expressão alemã, compete, em desvantagem, com o largo uso de superman. Logo, eles preferem dizer Übermensch e Übermenschlichkeit (equivalente a “sobre-humanidade”, por analogia a übermenschlich, adjetivo referente a “sobre-humano”), explicando e trabalhando os termos sem traduzi-los diretamente.1
A argumentação do leitor, apoiada pelos estudiosos americanos, é consistente. Mas vou insistir na tese, defendendo que a “confusão” não seria casual, apontando para apropriações significativas do conceito de Nietzsche. Em história recente, publicada no Brasil no ano de 1993, o personagem conhecido como Super-Homem viaja no tempo, chegando na Alemanha em pleno domínio nazista.2 A reação inicial da senhora, provavelmente judia, acuada pelos nazis num beco, junto com sua pequena filha, ou neta, é de pavor, chamando-o, em alemão, justo, de Übermensch — “uma das criações profanas de Hitler”. A menina, entretanto, vê bondade no herói, reconhecendo que ele não usa o símbolo, isto é, a suástica no peito. O próprio Super-Homem, com seu topete de galã dos anos 40, tenta se comunicar com elas em alemão, destacando sua condição de norte-americano — como aliás o uniforme, com as cores da bandeira estadunidense, sempre lembra.
Apenas nesta imagem já podemos ver a dupla apropriação do termo cunhado por Nietzsche — pelos nazistas, e pelos quadrinistas. Os nazistas (em boa parte devido à irmã do filósofo, anti-semita convicta que, aproveitando os anos finais de loucura do irmão, modificara e “editara” seus textos para servirem à “causa”) apropriaram-se do termo para melhor forjarem o mito da superioridade ariana. Os norte-americanos, certamente por oposição conveniente — the Superman versus der Übermensch —, valorizariam sobremaneira a criação dos jovens estudantes: já em 1940 a revista do personagem alcançava a tiragem de 1.400.000 exemplares, gerando seriados radiofônicos, televisivos e cinematográficos — além dos muitos dólares.3
Na mesma época, certa personalidade histórica respondia pela alcunha de homem de aço, tal qual, desde o princípio, os quadrinhos também chamavam o seu personagem. Jossip Vissariônovitch Djugaschvili, conhecido como Stálin (“homem de aço”, em russo), dominava com mão mais do que forte a então União Soviética, esperança dos socialistas por décadas (socialistas que, mais tarde, tiveram de digerir, dolorosamente, o que o “homem de aço” fizera com as suas esperanças).4
Dentro deste clima de guerra, em que os homens de aço se multiplicam nos governos e nos media, retornemos ao Super-Homem.
Ele é o primeiro super-herói criado no século XX, combinando elementos da ficção científica nascente com atributos de heróis mitológicos, fundindo Hércules e Ícaro em figura única e bem-sucedida. Dezenas, e depois centenas de super-heróis o seguiriam pelo século adentro, numa overdose de poder imaginário sintomática da época. Naquele momento ele já representava, adequadamente, o vertiginoso aumento das possibilidades da humanidade, quer para criar quer para destruir, bem como comparecia para melhor compensar a vertiginosa diminuição, conseqüente, das possibilidades de cada indivíduo. O Superman tem poderes fantásticos, mas os esbanja lutando com vilões extravagantes, enquanto escapa de mulheres insistentes.5
Se a história do Super-Homem dos quadrinhos ilumina, de maneira transversa, a história do século xx, interessa notar como o seu poder aumenta desmesuradamente, com o tempo, adquirindo a capacidade de voar e a total invulnerabilidade, para, adiante, diminuir progressivamente (tanto quanto a crença do século nas próprias possibilidades).
Lex Luthor, seu inimigo predileto, descobriu o calcanhar do Aquiles moderno: a vulnerabilidade a meteoros advindos de seu planeta natal, ou seja, a pedras de kryptonita. Nos últimos anos, esta vulnerabilidade se estende, permitindo que ele se machuque cada vez mais, até surpreendentemente morrer, em “17 de novembro de 1992”, perante um monstro novo, com o nome de Doomsday — o dia do Juízo, da Condenação Final; o Apocalypse. A vulnerabilidade adquirida lhe empresta humanidade e caráter, facultando-lhe arriscar e perder a própria vida. Depois das edições especiais sobre a morte do Super-Homem, a editora lançou (como seria esperado) sua ressurreição.6
Em que sociedade se precisa tanto de “homens de aço”, à direita e à esquerda, defendendo, cada um a seu modo, a liberdade, os fracos, e os oprimidos? Talvez, “numa sociedade particularmente nivelada, onde as perturbações psicológicas, as frustrações, os complexos de inferioridade estão na ordem do dia; numa sociedade industrial onde o homem se torna número no âmbito de uma organização que decide por ele, onde a força individual, se não exercitada na atividade esportiva permanece humilhada diante da força da máquina que age pelo homem e determina os movimentos mesmos do homem — numa sociedade de tal tipo, o herói positivo deve encarnar, além de todo limite pensável, as exigências de poder que o cidadão comum nutre e não pode satisfazer”. 7
A nossa é a sociedade em que o poder do ser humano, enquanto espécie, cresce em razão inversa ao poder do ser humano, enquanto indivíduo. Podemos exterminar-nos várias vezes, e este é um dado novo na História; mas narrativas como a de Robinson Crusoé não são mais sequer verossímeis. O indivíduo que hoje se perdesse sozinho numa ilha absolutamente isolada não saberia mais levantar a sua casa, fazer a sua roupa, caçar a sua alimentação. Na verdade, antes mesmo de morrer de fome, morreria de angústia e de desespero, por não se poder reconhecer sem as muletas, inclusive discursivas, com que sobrevive.
Esse tempo precisa, sim, do Superman; mas semelhante herói superdotado não escapa a seu tempo, nem mesmo voando à velocidade da luz: “usa das suas vertiginosas possibilidades operativas para realizar um ideal de absoluta passividade, renunciando a todo projeto que não tenha sido previamente homologado pelos cadastros do bom senso oficial, tornando-se o exemplo de uma proba consciência ética desprovida de toda dimensão política: o Superman jamais estacionará seu carro em local proibido, e nunca fará uma revolução”. 8
O Super-Homem faz de conta que busca valores mais elevados, como a salvação da Terra, a punição de criminosos, o reparo a danos patrimoniais e morais — mas o meio torna-se fim em si. O “mal” acaba sendo um pretexto para o mesmo mal se fingir de “bem”, se o que se extravasa é a vontade de poder mais que os demais — o que já o diferenciaria do Übermensch, na medida em que a vontade de poder nietzschiana não toma os outros por medida —, é a sede de sangue, a identificação com o mais forte, com o mais esperto — com o vencedor. Como nos filmes de faroeste, o mocinho “é uma contradição a cavalo: defende os oprimidos como se fosse democrata, e o faz à força, reunindo em si todos os poderes”.9
Isso significa que o Super-Homem “de capinha” não será o Übermensch nietzschiano (a menina do primeiro quadrinho estava certa); mas também significa que um acaba por “falar” do outro, que o outro acaba por vestir, às vezes, a capa vermelha do “um”. Umberto Eco se pergunta se os homens de hoje estarão “inexoravelmente condenados a tornar-se ‘supermen’, e, por conseguinte, subdotados, ou poderão individuar neste mundo as linhas de força para um novo e civil colóquio? Será este mundo só para o Übermensch, ou pode ser também um mundo para o homem?” 10
Quando temos de voltar a Nietzsche. O texto em que o filósofo mais falou do Übermensch é também um dos seus mais conhecidos: Also sprach Zarathustra. Zaratustra, na verdade, existiu: foi um profeta iraniano, vivendo no século vii ac, que teria formulado os valores posteriormente desenvolvidos pela religião de Mani, exatamente, o maniqueísmo. Zaratustra é então “aquele que instalou o que Nietzsche considera como uma ficção ilusória. É sua tarefa consertar os estragos: Zaratustra é um assassino que volta para o local de seu crime. Assim, ele volta para retificar sua última anunciação, anular o dualismo metafísico”.11
Zaratustra queria ensinar, ao povo reunido para ver o funâmbulo, o super-homem, se o homem é, justo, “algo que deve ser superado”. O homem mesmo nada mais seria do que uma corda, “estendida entre o animal e o super-homem — uma corda sobre o abismo”. O homem se poderia admitir grande, sim, desde que se reconhecesse ponte, e não meta.12
Nietzsche, o filósofo da hybris moderna, desejava, paradoxalmente, o limite: o limite no que pode ser pensado.É isto que significaria a verdade enquanto “desejo de verdade”: que tudo se transforme no que pode ser humanamente pensado, visto, sentido. Que toda verdade se reconheça desejo, logo, se assuma responsável pelo que formule.
Porque, nos dias presentes, boa parte dos indivíduos representativos teria sido alçada a patamares de glória e de visibilidade para melhor esconder, pelo barulho e pela luminosidade dos fogos discursivos de artifício, a alienação do gênero humano. Faz sentido a advertência de Horkheimer: “Os chamados ‘grandes indivíduos’ dos nossos dias, os ídolos das massas, não são indivíduos genuínos, são meras criações de seus agentes publicitários, ampliações de suas fotografias, funções do processo social”.13
A humanidade se deixa entregue a si mesma, morto Deus e feridos, de morte, os valores que em volta Dele gravitavam. Afirma-se sua solidão ontológica, no plano do ser, e seu isolamento axiológico, no plano do valor.14
É neste momento que o super-herói dos quadrinhos se insinua como paradigma: sua força vale, tautologicamente, para demonstrar o valor da própria força e demais variantes, como o sucesso e a vitória. Ou: “numa era em que todo mundo se torna ninguém, para que o ninguém se veja como alguém ele precisa projetar-se em um Super-alguém, cujos reflexos ele colhe como se fossem uma chuva de ouro: identifica-se com o que ele não é, justamente porque não é”.15 Quanto mais o sujeito é objeto (sujeitado...), tanto mais precisa fazer de conta que controla a sua vida; sentado diante do videogame, finge-se construindo, com as próprias mãos, no punho do joystick, um destino de luta e de aventura — destino este que, contudo, já se encontrava previamente programado.
Dentro desse quadro, surgem as críticas ao conceito, por parte, entre outros, de Bertrand Russell. Russell, na sua História da filosofia ocidental, diz que as concepções morais e políticas de Nietzsche levam para uma organização de tipo fascista e daí a um Estado policial, onde os heróis se encontrariam em campos de concentração. Em semelhante comunidade, “a fé e a honra são minadas pela delação, e a pressuposta aristocracia de super-homens se degenera num bando de trêmulos poltrões”. Observa que a ânsia de poder, com que o filósofo alemão adornara o seu Übermensch, é em si mesma um produto do medo, e não da tal “vontade de potência” . É porque temeria os seus vizinhos que Nietzsche teria posto entre eles tanta distância e diferença, idolatrando tiranos do passado enquanto prepararia a ascensão de tiranos em futuro próximo. Russell entende que, “em parte como resultado de seu ensinamento, o mundo real se tornou muito semelhante ao seu pesadelo, mas isto não o torna, de modo algum, menos horrível.”16
Suas críticas não são de todo impertinentes. Assim como o pensamento de Kant permitiu deriva positivista, o pensamento de Nietzsche terá permitido deriva fascista que pode ser estudada. Mas, na verdade, o filósofo não se preocupara em construir uma obra unitária, que brilhasse pela coerência, se toda a sua reflexão combate a lógica tradicional do signo, calcada na concepção aristotélica da verdade como adequação estrita à realidade, que por analogia exige adequação estrita do argumento a uma premissa básica. As críticas, em relação a um pensamento como o de Nietzsche, podem pecar por atribuir coerência, negativa, à obra que como tal não se pretendia. Ao mesmo tempo, tendem a ler de modo unívoco texto desde o princípio equívoco, ambíguo, isto é, um texto filosófico muito próximo de um trabalho literário. Mesmo em seu orgulho aparentemente desmesurado, quiçá adolescente (o que pode ser visto tanto como defeito quanto como qualidade), flagrante em Ecce homo (que, por sua vez, assim como Zarathustra, também é um exercício radical de paródia, de ironia e de auto-ironia), inúmeros fragmentos da sua obra sempre deixaram muito claro que todo filósofo “ocupa um ponto de vista, uma perspectiva: quando pensa, interpreta, é antes de mais nada um ser vivo interpretando a vida, e nunca passa de um porta-voz da eterna inspiração da vida por ela mesma, interpretação continuada por outros meios [..]; de onde a lembrança de uma modéstia necessária”.17
O que tais críticas usualmente não discutem é a ligação, estreita, do conceito de Übermensch com a concepção do eterno retorno. A ética de Nietzsche modifica-se completamente, se levamos em conta esta ligação. Qual é a principal razão conceitual que inviabiliza confundir o Übermensch com o caminho de Clark Kent em direção à cabine telefônica mais próxima? A aproximação que se faz, principalmente em Assim falou Zaratustra, entre o conceito de eterno retorno e aquele Übermensch.
Pela concepção do eterno retorno, deve-se viver cada instante sabendo que é um retorno e sabendo que retornará, isto é, deve-se afirmar cada instante, abandonando a posição ressentida e reativa de negar os instantes que não nos favorecem.
“Foi assim? Então assim eu o quis e assim eu o quero!” — eis a mais do que exigente injunção do eterno retorno, que também se pode formular como: “torne-se o que você é”.18 Logo, o Superman não pode ser o Übermensch. Porque há Clark Kent, seu alter-ego medroso; porque ele mesmo, voando mais rápido do que uma bala, representa a negação dos poderes que temos e do ser humano que somos. Representando a negação dos poderes que temos e do ser humano que somos, aponta como mais uma imagem das vidas “editadas” que levamos, optando por construir heróis e gestos espetaculares na sociedade do espetáculo, no lugar de construir atitudes cotidianas — de tornar-nos o que de fato seríamos.
Nesse passo, cabe a “bronca” de Wilhelm Reich em cima do Zé-ninguém, indivíduo alienado que, apesar de tudo o que não é, ainda acreditaria cegamente no Império da Individualidade, assim confundindo Über, Unter e Super: “Foi-te oferecida a escolha entre a exigência de superação do Übermensch de Nietzsche e a degradação do Untermensch em Hitler. Berrando “Viva”, escolheste o Untermensch”19 , isto é, o infra-homem nazista.
O infra-homem é aquele que tem remorsos, que pede desculpas a todo mundo e a si próprio. E remorsos seriam obscenos porque implicam tentativa racionalizante, pouco importa se falha e falida, de negar-se como aquele que teria agido assim ou assado. A frase-emblema do infra-homem bem poderia ser: “se eu pudesse voltar atrás, faria tudo diferente, ah, não faria aquilo que fiz”. O arrependido tenta desobrigar-se de sua responsabilidade não só perante os demais, mas, principalmente, perante a si mesmo, uma vez que procura negar ser aquele que foi (negação, de resto, absurda, porque impossível). Sustenta-se na possibilidade de poder voltar atrás e desfazer não só o que fez e disse, como ainda todas as conseqüências (quando essa possibilidade, simplesmente, não há20). Elide os fenômenos da sua história particular, tentando esgarçar e desmontar as relações em nome de um valor superior (aquele no qual pensa só-depois) que, todavia, não existe. O que há é irresponsabilização, se as conseqüências do que fizemos nos alcançam de qualquer modo, indiferentes a que tenhamos “melhorado” nesse meio-tempo, indiferentes às nossas manifestações mais ou menos compungidas de arrependimento.21
Se o fizemos, se o dissemos, é porque o quisemos, é porque foi de algum modo preciso, necessário; se o fizemos, se o dissemos, é porque assim mesmo nos constituímos o que agora somos, é porque de algum modo valeu a pena; se o fizemos, se o dissemos, logo, devemos desejar fazer e dizer novamente, celebrando a vontade e o desejo como a essência do que somos. Na verdade, só afirmando o tempo passado se pode afirmar o passar do tempo. Por isso, o eterno retorno compõe-se dentro de uma doutrina ética que, justamente, celebra a vida:
Digamos que “me tenha” morrido o meu avô, ao qual eu seria muito ligado (talvez eu carregasse o seu nome, por exemplo), num momento particularmente importante da adolescência. Tudo o mais que eu haja vivido só faz sentido, só pode fazer sentido, a partir deste acontecimento. Pode ter sido doloroso, certamente foi doloroso, mas, inclusive por isto mesmo, o acontecimento me deu a vida que eu tenho — o acontecimento da morte do meu avô terá sido, em última análise, vida. É absurdo lamentá-lo, é absurdo pretender que a vida foi injusta comigo; a vida me “fez”, como sempre, aliás, vida — para diante, irreversivelmente.
Foi assim?; assim eu o quis. Era isso a vida?; pois muito bem, outra vez!
Digamos, permanecendo neste terreno hipotético, que eu haja mantido uma relação, um casamento, particularmente conflitivo, infeliz. Depois de certo tempo, a relação acabou. Perdi tempo? Se eu pudesse voltar atrás, fugiria daquela pessoa? Não. Primeiro, porque não posso voltar atrás. Segundo, porque não poderia fugir daquela pessoa, se ela terá sido necessária, melhor dizendo, terá sido absolutamente fundamental para constituir-me na pessoa que eu sou agora. Não, eu não perdi tempo; ganhei o tempo que eu tenho hoje.
Foi assim?; assim eu o quis. Era isso a vida?; pois muito bem, outra vez!
É o que brada Zaratustra, com tranqüilidade: “Todo o Foi assim é um fragmento, um enigma e um horrendo acaso — até que a vontade criadora diga a seu propósito: Mas assim eu o quis!” 22
Para encerrar, então, é preciso retornar às perguntas do começo. Por que der Übermensch continuaria sendo necessário? E por que the Superman também se fez necessário, ainda que por razões diversas?
O Übermensch continua sendo necessário, e portanto desejado, pela crítica permanente e dinâmica que propõe, para a espécie humana, sobre ela mesma. Associado à noção do eterno retorno, formula uma exigência moral da maior importância para os tempos que multiplicaram tantos arrependidos e saciados (ao mesmo tempo). O Superman se fez necessário, mais tarde, quer enquanto atualização de mitos arcaicos, nomeando pelo avesso a fraqueza que nos prende ao chão, quer enquanto possibilidade paródica, irônica, daqueles mitos.
Ainda que “super-homem” não seja a tradução literal correta para Übermensch, é uma das traduções, ou traições, que a nossa época deu para o conceito nietzschiano. Não nos cabe fingir que isto não aconteceu, torcendo o nariz para o gibi. A separação acadêmica, entre os universos da filosofia e da narrativa popular, em outras situações pertinente, mostra-se, no caso, inadequada. Mesmo que esta narrativa não se transforme em problema para si própria, nada impede que ela se transforme em problema para nós.


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